Pesquisa personalizada

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Golem e o Adão


Por: Joana de Mello Moser
Universidade Autónoma de Lisboa


Origem do mito
Diz a lenda que o mito do Golem nasceu da mística hebraica do séc. XIII. O Golem – matéria informe – ter-se-ia tornado num homúnculo a partir da invocação mágica de um nome. Terá sido Elijah de Chelm quem criou o Golem a partir do barro, ao escrever na sua fronte o "Shemhamforash" – nome secreto de Deus. Assim lhe foi concedido o poder da vida, mas não o poder da palavra. Quando o Golem atingiu um tamanho e força sobrehumanos, o criador, temendo as suas potencialidades destrutivas, apagou--lhe o nome da testa e ele transformou-se em pó.
Rezam algumas versões da lenda que não foi o nome de Deus mas a palavra "emet" – "verdade" – que foi inscrita na sua testa. A destruição do Golem verificou-se quando
se apagou a primeira letra, tendo restado a palavra "met" que significa morte.
O motivo central deste mito é o acto da criação, tal como vem descrito no Livro do Génesis – criar um homem a partir da terra, dar vida à matéria, desafiar e copiar Deus –, pelo que na perspectiva cristã esta é uma temática considerada absolutamente prometaica.
Na opinião de Aglaja Hildenbrock (1986: 65), a lenda do Golem tem uma componente folclórica e outra teológica. No que respeita à componente folclórica, conta-se que certo dia o Rabbi Low (Praga, séc. XVI) se propôs criar um servo a partir do barro, o terá "animado" por fórmulas mágicas através do nome de Deus, mas que mais tarde o teve de destruir, porque ele tinha entrado num descontrolo total. Apesar de o Rabbi ser considerado sábio e santo, a criação do Golem foi vista como um acto melindroso e problemático, cuja ambivalência se manifesta na dupla natureza do Golem: por um lado possui um corpo dotado de forças naturais, por outro, é mudo e não tem alma, não devendo ser considerado um ser humano na verdadeira acepção da palavra: é insensível, mas obediente; um ser sem passado nem futuro, sem duração e sem memória.
Assim, embora criado como Adão a partir da terra, o Golem não tem sentimentos nem capacidades intelectuais; ele "escuda-se" na pessoa do Rabbi Low – "a sua potência espiritual" –, o que nos leva a pensar que o Golem é um "duplo" do Rabbi.
No que respeita à componente teológica, tudo se passa de forma diferente: a Adão, a vida e a palavra são dadas por meio do sopro divino. Criado a partir da melhor porção de terra criteriosamente seleccionada no centro do mundo, o monte do Sião, ele deverá ser entendido como a reunião de todos os elementos de que é constituído, ou como a súmula dos quatro pontos cardeais, a partir dos quais é feito (Scholem, 1966: 181.2).
Adão será pois a totalidade; ele pertence um pouco a todo o lado. O Adão que o sopro de Deus ainda não insuflou é neste sentido como o Golem, que significa "sem forma".
Numa célebre passagem do Talmud que G. Scholem expõe numa das suas obras, vêm descritas as doze primeiras horas de Adão: "durante a primeira hora reuniu-se a terra; na segunda, esta foi amassada e tornou-se "Golem" – uma massa ainda informe; na terceira hora moldaram-lhe os membros e na quarta deram-lhe uma alma; na quinta hora já se mantinha de pé e na sexta nomeou todos os seres vivos da terra" (ibidem).
De acordo com este passo, Adão encontrava-se ainda em estado bruto – não tinha ainda alma nem tão pouco falava – ao nomear as coisas. As opiniões dos grandes estudiosos divergem no que acima foi dito. Citamos a propósito um passo que Scholem menciona nas suas obras La Kabbale et sa Symbolique e em A Cabala e a Mística Judaica. Na primeira diz-nos que num Midrash dos séculos II e III, Adão vem descrito como sendo "um Golem de tamanho e força cósmicos a quem Deus terá mostrado as gerações futuras, quando Adão ainda se encontrava ‘sem vida’ e não falava" (idem, 182); na segunda refere que o ponto de partida para a doutrina da trans-figuração das almas, que começou a ter impacto entre os cabalistas a partir dos meados do séc. XVI, foi um velho Midrash que narra que quando Adão jazia, ainda sem vida, como mero Golem, Deus lhe mostrara os justos que proviriam da sua semente. Todos estavam dependentes do seu corpo, alguns pendurados na sua cabeça, outros nos seus cabelos, no seu pescoço, (...) na sua boca e nos seus braços" (Scholem, 1990: 207. 5).
Os cabalistas interpretaram estas palavras do seguinte modo: se todas as almas do gênero humano se encontravam em Adão, era porque Adão antes da queda formava "um corpo místico", um ser cósmico no qual se organizava "a substância anímica de todos os níveis de realidade, do mais elevado ao mais baixo". Adão era assim a verdadeira Alma que Deus criara, o reflexo da realidade espiritual.
A questão que se coloca agora é a seguinte: Quem é Adão?
Terá ele "assistido" à criação do mundo?
Pela citação do Midrash que referimos, parece haver aqui dois aspectos a considerar: Como poderá Adão ter nomeado as coisas da terra numa fase em que não possuía ainda uma alma nem tinha o poder da palavra, o que para os cabalistas significa que ainda não tinha sido dotado de razão, pois para eles a palavra é a faculdade mais elevada que um "ser" pode possuir. Mas esta mesma citação pode levar-nos a concluir que foi nestas primeiras horas de vida de Adão (o Golem), precisamente o espaço situado entre a segunda e a quarta, que se verificou todo o mecanismo da criação.
Alexandre Safran formula uma explicação para estas questões: "Se unir a inteligência ao amor e souber pôr a sua conduta ao serviço do bem, o homem está em condições de se aproximar do modelo divino, pois ele é o único ser cuja natureza está dividida: é matéria, mas também é espírito e é isso que faz com que tenha um lugar especial no seio da criação" (Safran, 1960: 324.6). Essa também a razão por que tem sempre uma grande tendência para distinguir em todos os elementos do universo um aspecto duplo: o material e o espiritual. Compreendemos assim que matéria e espírito remontam a um pensamento original/ espiritual, que corresponde aos dois aspectos da criação: "a bondade, que é de ordem espiritual, e a verdade, que é de ordem racional, científica" (ibidem).
"No princípio era o Verbo..."
O Verbo é aquilo que surge em primeiro lugar e antes de tudo. É um atributo divino, o sopro da criação que no momento original se identifica com a Palavra. É a manifestação de um princípio visível e espiritual que é Deus, de onde tudo emana e que se confunde, no início, com o nome de Deus, o que significa que entre o nome e a coisa não há distinção.
Alef, o puro sopro, permite a transmutação do nada original – o caos – para o cosmos. Quando se diz "faça-se", inicia-se o processo da criação, a viragem marcada de uma "matéria informe" para qualquer coisa que ganha forma. Deus disse: "Faça-se a luz". E a luz foi feita. E Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Chamou dia à luz e às trevas, noite.
A identidade indiferenciada vai dar lugar a um sistema de opostos: é uma "força" da qual a linguagem brota e dela o próprio mundo criado. "Façamos o homem à Nossa imagem, à Nossa semelhança". E assim Deus cria depois o homem a partir do barro, a quem é insuflado o sopro divino e é dada a capacidade da linguagem.
É, pois, Adão quem vai dar o nome às "coisas". Esta possibilidade de "nomear" acontece ainda numa fase paradisíaca em que a linguagem humana é reflexo divino. A essência espiritual reporta para um momento primitivo em que havia um sentido profundo da interligação entre a Palavra e a coisa, porque nas origens o nome não é conteúdo.
Não há separação entre conteúdo e forma, porque tudo se (con)funde. Mas no momento em que Deus concede ao homem o dom da linguagem, coloca--o acima da Natureza e inicia-se a divisão. O homem vai nomear aquilo que é Uno e nomear é conhecer. Conhecer é separar.
A contradição é própria do homem, que acaba por entender que é da tensão dos opostos que nasce a união. E é quando toma consciência do seu estado de pecado – de "separação" – que se encontra em vias de proceder à reunificação dos elementos divididos.
De tão diferenciada, a linguagem acaba por perder a sua unidade primordial e estilhaça-se. O homem – como a linguagem – dá-se conta de todo esse desmembramento e tem vontade de regressar. Com toda a ambiguidade que encerra, o mito da criação tornou-se de há muito um desafio para o homem: para além de se propor dar vida a um ser criado a partir da terra, ele precisava descobrir a maneira de o "animar".
Foi assim que, a partir de muitas combinações de letras do alfabeto hebraico, pensou ter chegado à fórmula mágica, criando um "Golem" de barro ao mesmo tempo que pronunciava essas combinações. Mas tudo não passou de uma ilusão, pois a desintegração a que Adão foi sujeito e que constituiu a sua queda nunca se poderia verificar com o Golem.
O versículo 3,19 do Livro do Génesis elucida-nos um pouco sobre este tema. "Tu és pó e em pó te tornarás"!, disse Deus. Mas ao passo que o homem se liberta do seu corpo ao tornar-se pó, regressando pela parte espiritual ao "Uno", com o Golem – que não tem espírito – não pode verificar-se a re/ integração: o Golem transforma-se em pó e dele não resta nenhum vestígio.
É este, a meu ver, o segredo que o homem procura: conseguir dar uma alma a um ser por si fabricado.

Sugestão de Leitura:
O Golem Narração por Elie Wiesel
O Golem por Gustav Meyrink